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Os Crioulos de Cabo Verde

 

 

 

 

Paulo Aníbal da Costa Santos

 

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© Paulo Aníbal da Costa Santos

© Os Crioulos de Cabo Verde

 

ISBN digital: 978-84-686-9180-0

 

Impreso en España

Editado por Bubok Publishing S.L.

 

Reservados todos los derechos. No se permite la reproducción total o parcial de esta obra, ni su incorporación a un sistema informático, ni su transmisión en cualquier forma o por cualquier medio (electrónico, mecánico, fotocopia, grabación u otros) sin autorización previa y por escrito de los titulares del copyright. La infracción de dichos derechos puede constituir un delito contra la propiedad intelectual.

 

 

 

 

 

 

 

 

Para a Enovi, com todo o carinho.

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

 

Numa madrugada de há alguns anos, encontrei-me num barco avistando a Ilha Brava em Cabo Verde.

Com luz difusa e vendo a imensa Ilha do Fogo à direita, a Brava pareceu-me pouco mais que um grande rochedo no meio do mar, escuro e nebuloso.

Enquanto tinha esta visão, não pude deixar de reflectir que cerca de três semanas antes, nada me fazia prever uma viagem iminente, e muito menos para uma ilha cuja existência desconhecia por completo. Também não pude evitar um aperto nervoso, porque a inesperada situação em que me encontrava tinha um propósito de concretização incerta para mim, que era o de assumir a leccionação das disciplinas de História e de Cultura Cabo-verdiana no Liceu Eugénio Tavares, na Ilha Brava.

A preocupação não estava em ser professor de História, porque o currículo de Cabo Verde não é muito diferente do de Portugal, o que até me daria tempo para me documentar sobre a História do país. Resultava a minha inquietação de saber não haver manual de Cultura Cabo-verdiana, e de praticamente não saber nada sobre a matéria.

Tinham-me explicado que na falta de docente com formação específica, como acontecia na Brava, eram os professores de História que leccionavam a disciplina, pelo que sendo o único licenciado em História da escola competia-me suprir essa sua necessidade.

Poucos dias antes, informaram-me que era uma disciplina do 10º ano, que tinha por objectivo uma iniciação à Antropologia Cultural, introduzindo a Cultura Cabo-verdiana. Ter tido alguma formação em Antropologia e Estudos Africanos no meu desenvolvimento académico, parecia-me precioso, mas na verdade apenas funcionava como distracção para a minha ignorância de Cabo Verde.

Na cidade da Praia, a Cooperação Portuguesa sugeriu-me que visitasse um dos liceus da cidade para me informar como leccionavam a disciplina sem manual. Seguindo o conselho, dirigi-me ao Liceu Domingos Ramos, onde um membro do Conselho Directivo e uma professora de Cultura Cabo-verdiana – dos quais infelizmente esqueci os nomes – gentilmente me forneceram uma resma de fotocópias de vários livros, a partir da qual se ensinava a disciplina.

Foi munido dessas fotocópias que assumi as minhas funções, acabando por cumprir sete anos no seu exercício.

Entretanto, a minha inicial ansiedade teve que ser substituída pelo cumprimento das minhas obrigações, que felizmente se conjugaram com curiosidade por um povo que me foi surgindo carismático e muito receptivo, mas completamente esquecido naquelas ásperas ilhas, no que fui reunindo sustento documental, cogitando sobre a sua cultura, acabando por criar coragem para produzir este livro.

Relato estas recordações para dizer que esta não é uma obra de um especialista, mas apenas a de um entusiasta empenhado, além de explicarem em parte o que me dispôs para este projecto, que é uma mera interpretação de outros trabalhos e apenas pretende orientar curiosos ou eventuais descobridores de Cabo Verde.

Não apresento um romance, mas tendo algures já lido que os romancistas escrevem para si próprios, sugere-se-me que persigo de certo modo esse objectivo, porque com o desenvolvimento da minha experiência, pensei que a primeira imagem que tive da Brava -- obscura, nebulosa e mínima – reflectia a percepção que eu tinha de Cabo Verde conjuntamente com a dos restantes portugueses, pelo que teria gostado de ter acesso a um livro como este, especialmente indo viver para Cabo Verde numa situação em que devia leccionar matérias da sua cultura, e que desconhecia!

Além disso, a dignidade nacional e o comprometimento com os cabo-verdianos começaram a importunar-me, quando fui percebendo a ignorância quase generalizada que os portugueses têm de Cabo Verde, o que acabou por me parecer uma lacuna com o seu quê de indigência, ou no mínimo um grande alheamento para com os cabo-verdianos.

Isto porque, tornando-me atento na averiguação da percepção portuguesa de Cabo Verde, e com uma certa inquietação de poder destoar em demasia do geral dos meus conterrâneos, fui experimentando um misto de alívio mas também muito desassossego; porque por um lado comprovei não ter divergido da sua maioria, mas por outro verifiquei que muitos portugueses apenas sabem que Cabo Verde é um país africano, uma ex-colónia portuguesa, e que tem muitos emigrantes em Portugal. Até constatei, perplexo, que vários portugueses imaginam que Cabo Verde seja muito verde, enquanto outros demonstraram pensar que é um país continental!

Não fiz nenhum inquérito, é certo, mas a interpelação que as pessoas (dos mais variados estratos sociais e culturais) me faziam sobre Cabo Verde, quando sabiam ter ali a minha vida, era quase inevitável, pelo que nem desenvolvi grandes esforços na minha averiguação, concluindo – com salvaguarda de situações pontuais de quem viveu, passou pelo país, ou se relaciona com cabo-verdianos -- que as únicas referências que muitos portugueses parecem associar a Cabo Verde, serão além das que já referi, a morna de Cesária Évora e a ilha do Sal como experiência de férias ou destino para isso. Muitos até confundem a cachupa como sendo um prato angolano, e pouco mais…!

Mesmo os que usufruíram dos pacotes turísticos do Sal revelam um conhecimento de Cabo Verde muito limitado e sobretudo muito descaracterizado; o que considero inevitável porque, tendo visitado aquela ilha várias vezes, experienciei sempre uma ideia de reprodução da orla marítima do Algarve, acrescentada de crioulos e senegaleses que lhe proporcionam exotismo.

Ao mesmo tempo, fui descobrindo que a maioria dos escritos de autoria portuguesa sobre a História e Cultura Cabo-verdianas remontam à época colonial, tornando-se depois meramente cooperativos ou sem iniciativa privada. Doutro modo, o actual envolvimento português na edição de obras sobre Cabo Verde, que não esteja orientado para o turismo, parece reduzir-se ao Instituto Camões -- com grande mérito aliás, dado ter uma intervenção maioritária neste âmbito, mas naturalmente com edições limitadas -- pelo que, no mercado português, simplesmente não se encontram obras que sejam referência no conhecimento de Cabo Verde, enquanto são pontuais as bibliotecas que as proporcionam com algum acervo.

Claro que, se não tivesse a vivência em Cabo Verde que me calhou em sorte, muito provavelmente nunca me teria tornado atento para estas percepções, como seguramente vivo ignorante de muitas outras; mas mesmo considerando esse relativismo, não pude deixar de achar surpreendente que se torne dificílimo para um português o acesso à informação sobre Cabo Verde que ultrapasse a orientada para o turismo, quando o nosso país teve ali uma intervenção genética que também é História de Portugal.

Se estas têm sido as minhas constatações entre os portugueses, opõe-se-lhes singularmente a verificação de que os cabo-verdianos nos conhecem perfeitamente.

Em Cabo Verde segue-se e vibra-se com o nosso campeonato de futebol, tal como se estivéssemos em Portugal, muitos conhecem a nossa política, figuras públicas e evolução social, a nossa história e cultura, as nossas regiões, e os que visitaram o nosso país falam com reverência da sua beleza, da culinária ou até da sociedade. Creio mesmo, que muitos sabem mais da nossa evolução nacional que alguns portugueses.

Da minha perspectiva de convivência quotidiana com os cabo-verdianos, este abismo de percepções pareceu-me uma insensibilidade portuguesa, onde ainda concorre às vezes a injustiça de uma avaliação bastante circunscrita aos aspectos malignos da imigração, que tendem a associar os cabo-verdianos ao gueto e à delinquência.

De acordo com a ideia que invoquei – que escrevemos para nós próprios, e portanto para a minha sensibilidade neste caso – já teria razões suficientes para a elaboração deste trabalho. Mas outras reflexões, improváveis num tuga alfacinha da actualidade, que não tenha criado sensibilidades como as que tenho vindo a apresentar, levaram-me a engendrar outros motivos.

Não pude deixar de pensar na recuperação/renovação de um património português que se parece ignorar – e eventualmente suprimir por omissão continuada – num Portugal finalmente europeu. Quase distraidamente, a minha motivação foi-se ampliando em considerações sobre a universalidade portuguesa, cuja posição privilegiada pode ser uma mais-valia para nós e para o mundo, mas que às vezes se parece ignorar neste pequeno rectângulo com ilhas adjacentes em que nos tornámos, considerar coisa do passado, ou até envergonhar devido às nossas maldades; quando partindo de uma introspecção honesta só pode ser inestimável para o nosso país, e afirmá-lo no mundo globalizado em que vivemos.

Naturalmente, tenho de considerar que estas observações não têm valor absoluto, porque muito se faz no âmbito da lusofonia, mas não pude deixar de as achar pertinentes para Cabo Verde quando percebi que permanece quase ignorado por Portugal quanto à sua actualidade, e mais ainda quanto ao seu passado que também é português, tendo até o estatuto de primeira elaboração de uma cultura crioula.

Ora, a posição em que me achei, pareceu-me única e privilegiada para contribuir ainda que escassamente para estas expectativas -- que seguramente não serão só minhas, mas também de mais portugueses e até de cabo-verdianos -- ou pelo menos para facilitar informação de Cabo Verde, já que quem quiser documentar-se sobre a sua cultura em Portugal terá muitas dificuldades, e também não terá fácil acesso em Cabo Verde.

Há que ressalvar mérito para o ensino público cabo-verdiano, que integrou a disciplina de Cultura Cabo-verdiana no décimo ano, ainda a oferecendo como opção nos dois anos posteriores do curso de Humanísticas. Mas, salvaguardado este acesso, a busca autónoma do conhecimento da cultura cabo-verdiana em Cabo Verde é no mínimo uma tarefa morosa. Apesar de activo, o mercado local de leitura é naturalmente acanhado, o que condiciona edições por vezes únicas e limitadas, dificilmente se reeditando obras antigas, mesmo que importantes; no que provavelmente também deve influir serem edições ou impressões realizadas quase exclusivamente fora do país (normalmente portuguesas).

Imagino que por essas razões, algumas das obras sobre História e Cultura Cabo-verdiana - que até existem muitas, seguramente ultrapassando as que apresento na bibliografia, até porque outras terão surgido depois do meu regresso – não sejam fáceis de se encontrar ali, no que é significativo que só tenha tido acesso a muitas por empréstimo ou através de trechos em fotocópia. Felizmente, as edições do Instituto Camões encontram-se com alguma facilidade em Cabo Verde mais do que em Portugal, sobretudo na Praia e provavelmente também no Mindelo.

Neste sentido, devo agradecer ao meu amigo e companheiro de viagem Carlos Tomás que me emprestou muitos livros, alguns essenciais, bem como ao Manuel Faustino que teve a mesma gentileza.

Enfim, para os portugueses, cabo-verdianos, para mim e para os meus alunos que não tinham manual, ou para todos os que queiram descobrir a identidade cabo-verdiana, apresento este livro, quanto mais não seja porque terão menos dificuldades do que as que tive na sua descoberta.

Devo alertar o leitor que as palavras em crioulo que vai encontrar não têm uma ortografia que possa afirmar ser exacta, pois que apesar de já existir um dicionário de kabuverdianu, em dejá vu não lhe consegui ter acesso por mais que o intentasse, pelo que segui os trabalhos de Manuel Veiga que indico na bibliografia.

O leitor também irá encontrar várias referências a Gilberto Freyre e até um subcapítulo que indico basear-se na sua “Casa Grande e Senzala”. É um autor que se pode considerar antigo, talvez até ultrapassado para alguns, além de lhe estarem associadas algumas reticências por ter sido acarinhado pelo Estado Novo mas, não me baseando apenas neste autor, arrisquei dar-lhe relevância porque apesar do que se possa dizer sobre ele, não deixa de ser muito incisivo e lúcido, mostrando actualidade face a outros trabalhos mais recentes.

Resta-me deixar os meus agradecimentos, antes de mais à Chanda Faustino que com admirável paciência foi lendo os vários manuscritos, e sempre com ânimo para entusiasmadas discussões que me foram muito inspiradoras, acabando por deixar muito dela neste livro. Fica um especial obrigado ao João Graça – incondicional opositor ao acordo ortográfico - que fez uma revisão sumária do português, e agradeço de novo ao Carlos Tomás, que também teve a paciência de fazer a crítica na perspectiva do leitor. Ainda envio um grande beijo de obrigado à Debora Abu-Raya (ela sabe porquê), deixo a minha eterna gratidão para os que se disponibilizaram para me ajudar a publicar este livro, e fica um abraço ao meu pai, que de algum modo também me condicionou para estas coisas.

 

 

 

 

 

 

I - ENQUADRAMENTO AMBIENTAL

 

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1. Apresentação Geográfica

 

Cabo Verde tem muito pouco de verde.

O visitante desprevenido que aterre num dos seus aeroportos internacionais, no Sal, Santiago, Boavista ou S. Vicente, fica chocado com as planuras ocres e despidas de vegetação.

Se visitar outras ilhas, verifica a persistência da paisagem seca, com variações é certo, mas dependentes de uma época muito limitada do ano.

A resposta a quem se interrogue sobre o nome do arquipélago, situa-se a cerca de 500 km para oriente, em Dakar, no continente africano.

Quem circular pelas avenidas desta cidade com expressão francesa pode descobrir placas com a indicação “Cabo Verde”, mas que se referem a uma zona da cidade que se edificou num extenso promontório que se alonga pelo mar. Esta referência remonta ao séc. XV.

Quando os portugueses desciam a costa ocidental africana, descobriram aquele promontório repleto de vegetação, designando-o como Cabo Verde.

Mais tarde, quando acharam o grupo de ilhas para onde aponta o cabo, chamaram-lhe as ilhas de Cabo Verde.

Apesar de integrado na região atlântica chamada de Macaronésia, que inclui Cabo Verde e os arquipélagos das Canárias, Madeira e Açores – de origem vulcânica comum –, para Cabo Verde o que assume relevância geográfica é o facto de ser uma sub-região do Sahel e ter predominância de ventos de NE, factores que condicionam uma quase constante secura.

O arquipélago de Cabo Verde é constituído por dez ilhas e alguns ilhéus, apresentando um desenho que sugere a letra U com base voltada para o continente africano, e distinguindo-se dois grupos de ilhas que aludem à sua posição relativa aos ventos de NE: concretamente as de Barlavento, mais a Norte – Stº. Antão, S. Vicente, Stª Luzia, S. Nicolau, Sal e Boavista – e as de Sotavento, nomeadamente Maio, Santiago, Fogo e Brava.

Outra distinção, mais introspectiva da geografia das ilhas, refere-se ao interesse geoeconómico desenvolvido por cada uma delas.

Neste âmbito distinguem-se três grupos:

- O de Santiago e Fogo.

- O das ilhas do Norte e Brava.

- O das ilhas Orientais.

 

O de Santiago e Fogo:

 

- Santiago e Fogo agrupam-se por terem sido as primeiras a serem povoadas e por permitirem boa exploração agrícola, mas sendo na verdade bastante diferentes.

Santiago, com 991km2, é a ilha maior e com melhores condições de ocupação, tanto hídricas como agrícolas. De interior elevado, veste-se de verde na chamada época das chuvas entre Julho e Outubro.

No Fogo avulta sobretudo o vulcão com 2 829m, o que a torna uma ilha única no arquipélago. Mas apesar de ter bons solos em consequência das cinzas vulcânicas, é escassa em recursos hídricos. A sua primazia no povoamento em relação a outras ilhas deveu-se à proximidade de Santiago e às suas possibilidades económicas de exploração do algodão, endógeno da ilha.

O das ilhas do Norte e Brava:

 

- Entendem-se como ilhas do Norte, as ilhas de Sto. Antão, S. Vicente, Sta. Luzia e S. Nicolau. A Brava, apesar de ficar a sul, integra este grupo pelas suas características geoeconómicas, muito semelhantes às de Sto. Antão e S. Nicolau.

Sto. Antão é das ilhas mais verdes. Muito alta – com um pico de 1979m – com profundos canhões, quase sem praias, proporciona no entanto recursos hídricos que permitem a agricultura. Apesar disso, o seu povoamento foi lento e até tardio (se bem que tenha sido a primeira a ser povoada no Barlavento), provavelmente devido à grande distância de Santiago e aos poucos locais propícios para portos, sendo inicialmente apenas utilizada como curral!

Apresentamos de seguida a Brava, porque apesar de estar a Sotavento, parece uma Sto. Antão em ponto pequeno. É a menor ilha habitada, com 10,5Km de comprimento por 9,310Km de largura, e quase mil metros de altura, sendo também muito verde e acidentada. Distingue-se ainda, por ter um microclima que se aproxima do de Sintra, sendo igualmente florida. Daí ser classificada como a ilha das flores e o seu principal centro urbano ter o nome de Vila Nova Sintra.

S. Vicente, menos alta e acidentada que a Brava e Sto. Antão, também é mais seca e tem piores condições para a agricultura. Não obstante, revela uma extensa baía e boas praias que permitiam fundear os barcos ou navios de grande calado. O seu povoamento foi escasso até ao desenvolvimento do Porto Grande, no séc. XIX, que captou a navegação internacional e um rápido crescimento demográfico, sendo hoje a ilha com maior ocupação a seguir a Santiago.

S. Nicolau destaca-se pelos grandes vales, oferecendo praias ou enseadas para o acesso, e “muitas boas agoas” -- como disseram os povoadores – pelo que apresentou boas possibilidades agrícolas e de ocupação. Foi a segunda ilha do Barlavento a ser habitada.

Sta. Luzia, com apenas 35 km2 e uma altura máxima de 395m é a ilha menor, e o que oferece apenas tem servido de complemento económico às ilhas que estão próximas, permanecendo inabitada.

 

 

O das ilhas Orientais:

 

- O grupo Oriental, assim designado por estar mais próximo do continente africano, é formado pelas ilhas do Maio, Boavista e Sal, com características mais homogéneas. Caracterizam-se por serem planas, não ultrapassando os 450 m nos pontos mais altos, são muito secas e com escassa vegetação, apresentando extensas praias com dunas, como acontece sobretudo no Maio e na Boavista. O seu interesse económico quase se reduziu ao sal e à pecuária extensiva, sendo no passado utilizadas como ilhas currais, e tendo uma ocupação humana incipiente. Considere-se por exemplo o Maio, que tinha apenas 400 habitantes no início do séc. XVIII.

 

 

2. Condicionantes Geográficas

 

Qualquer processo histórico-cultural desenvolve-se dentro de vectores ambientais incontornáveis, que se podem constituir como vantagens, constrangimentos ou desafios, e que necessariamente moldam as expressões culturais.

Para Cabo Verde é essencial que se considerem quatro vectores, aos quais daremos mais desenvolvimento mas que se apresentam já para que o leitor os tenha presentes. Nomeadamente o isolamento, a posição geoestratégica do arquipélago, os recursos geoeconómicos, e a sua condição de sub-região do Sahel.

 

a) O isolamento – Claro que a insularidade pode ser impositora de isolamento, mas foi sobretudo a conveniência económica – muito comprometida com a posição geoestratégica do arquipélago, como veremos -- que consoante a evolução histórica, induziu o maior ou menor interesse por Cabo Verde, tanto do poder central metropolitano como de particulares.

Consistentemente relacionadas com a geografia do arquipélago, e indutoras de isolamento, são as distâncias entre as ilhas.

Considere-se, por exemplo, que actualmente, uma viagem de barco entre a Brava e as ilhas a Norte que lhe estão opostas – S. Vicente e Sto. Antão – dura em média 12 horas, enquanto da Brava à capital em Santiago a duração é de 6 horas. Já da Brava para a ilha mais próxima -- o Fogo -- dura apenas cerca de 1 hora. A posição relativa de cada ilha à que lhe é mais distante, à capital em Santiago, ou à ilha mais próxima segue mais ou menos o exemplo referido.

Isto significa um grande isolamento da maioria das ilhas em relação à capital, condiciona um relacionamento de cada ilha quase só com a que lhe está mais próxima e enfatiza a dificuldade das comunicações, ainda se devendo sublinhar as fortes correntes, as vagas alterosas e os poucos portos de abrigo em algumas ilhas; além de que, noutras épocas, a navegação à vela aumentava as distâncias.

Um aspecto que acentua o isolamento de algumas das ilhas é o relevo complexo e elevado – como Sto. Antão, Santiago, Fogo e Brava – que se apresenta como uma barreira à comunicação entre as populações, sobretudo se estiverem em litorais opostos.

Nas ilhas planas do grupo oriental, se o relevo não é factor para o isolamento, este aconteceu no passado devido aos fracos recursos económicos, que não atraíam à ocupação; o que hoje em dia se tornou inverso como se verifica no Sal e Boavista, destinos turísticos de veraneio.

 

b) A posição geoestratégica – A localização atlântica do arquipélago constitui a sua grande vantagem, no passado como agora, mas com preço ambivalente.

Logo quando os portugueses chegaram a Cabo Verde, perceberam a sua conveniência para o acesso à chamada Costa da Guiné e ao seu comércio, mais do que Arguim ou as Canárias, próximas do deserto mauritano. Mais tarde, Cabo Verde ficou integrado na rota triangular, que ligava o continente africano à América e Europa, bem como às rotas para o sul de África, Índico ou Pacífico.

Naturalmente, a localização geográfica subsiste como potencial beneficiador de Cabo Verde. Contudo, no passado, este privilégio geoestratégico mostrou-se perverso atraindo bandidos do mar, potências europeias emergentes, bem como o oportunismo metropolitano expresso em depredação, tudo concorrendo objectivamente para o isolamento dos cabo-verdianos.

 

c) Os recursos geoeconómicos – Em Cabo Verde, os portugueses encontraram condições praticamente opostas às suas experiências de povoamento da Madeira e Açores. Nestes arquipélagos pode(ia)-se desenvolver uma grande diversidade de espécies agrícolas, a água não foi/é um problema e o clima é(era) prazenteiro, tudo convidando à ocupação.

De modo inverso, em Cabo Verde encontraram um clima quente e seco, solos arenosos e pedregosos, poucas opções agrícolas e poucos recursos hídricos. A acrescer a isso, por força da descontinuidade de solos cultiváveis, a agricultura viu-se constrangida à produção de minifúndio, tradicional e de subsistência, podendo-se contudo ressalvar boas possibilidades de produção cooperativa de algodão, plantas tintureiras, cana-de-açúcar e milho, como aconteceu.

A pecuária extensiva, sobretudo de caprinos, foi outrora muito explorada, mas permitida pela pouca ocupação humana, o que actualmente se torna inviável. Mas, transversal à produção agrícola ou pecuária era/é a pouca pluviosidade da estação das chuvas – finais de Junho a Outubro – e uma maioria de terras de sequeiro, que necessitam de chuva para sustentar aquelas actividades.

Noutro sentido, os recursos minerais são nulos. Mas podem-se indicar o sal, os solos vulcânicos e basálticos, com potencial de exploração, desde que se aceitem as limitações ecológicas.

A dificuldade no acesso às fontes de energia foi outro factor modelador da evolução cabo-verdiana. Cabo Verde é rico em sol, mar e vento, o que possivelmente permite encarar com tranquilidade o futuro de longo prazo, considerando-se o desenvolvimento tecnológico. Contudo, no passado – como agora – os recursos energéticos em Cabo Verde eram quase inexistentes, excluindo a pouca madeira, o vento, e as vagens da purgueira utilizadas na iluminação.

A pesca persiste como potencial económico de Cabo Verde, mas na verdade com limitações, porque só as ilhas do Maio e Boavista têm placas continentais prolongadas que permitem a proliferação de fauna marítima. Doutro modo, se as espécies migratórias como o atum, apresentam boas possibilidades, a sua exploração tem permanecido artesanal, enquanto têm sido estrangeiros a processar os seus maiores dividendos, como aconteceu com a pesca da baleia no passado, e como vem acontecendo actualmente com outras espécies.

 

d) Cabo Verde enquanto sub-região do Sahel – Sendo um arquipélago, Cabo Verde difere do Sahel continental, o que na verdade se revela como mais uma desvantagem, porque os relevos insulares e as correntes marítimas criam massas de ar que, evoluindo em associação com os alísios de nordeste, compõem um regime de ventos que mais reduzem a chuva.

A falta de chuva, omnipresente na História Cabo-Verdiana, é sem dúvida o factor mais marcante na vida das suas populações, o que ficou declarado larga e dolorosamente na cultura popular, bem como na literatura cabo-verdiana.

Normalmente, as fomes resultantes de Estios prolongados ou de pragas constituem o aspecto mais negativo das regiões do Sahel.

Em Cabo Verde a documentação não dá referência de nenhum período de seca ou fome no séc. XV (século do achamento). Para o séc. XVI já se assinalam duas crises explicitamente motivadas por períodos de seca ou fome. No séc. XVII também só há referência a duas. No séc. XVIII já se documentam nove e, no séc. XIX, doze1. No séc. XX, até 1960, estão assinalados seis períodos de seca ou fome com consequências gravosas para a população2. Depois desta data as secas não desapareceram, simplesmente as populações começaram a beneficiar de acções de ajuda, pelo que a partir de 1960 as secas estão assinaladas sem consequências na mortalidade.

Eventualmente, será correcto relacionarmos esta escalada com o carácter progressivo da sahelização e, mais recentemente, com o aquecimento global do planeta. Mas, as poucas referências a crises de fome em séculos mais recuados, também devem ter resultado da menor pressão demográfica, bem como da pouca expressão social das populações menos privilegiadas e/ou da pouca inquietação dos poderes instituídos.

Efectivamente, nos primeiros séculos de povoamento, a sociedade cabo-verdiana estruturada como uma escravocracia3, dividia-se praticamente só em senhores e escravos. Ora, entre 1460 e 1530, estes senhores beneficiaram de uma franca expansão económica de Cabo Verde, importando da metrópole a quase totalidade dos seus bens de consumo. Pelo que, qualquer crise, quanto muito teria tido consequências nas suas riquezas, enquanto as experiências dramáticas seriam dos menos privilegiados, que ficaram sem referência.

Posteriormente, Cabo Verde perdeu importância económica e a estratificação social alterou-se, com grupos menos ricos. Ou seja, com o passar do tempo Cabo Verde tornou-se socialmente mais permeável às agressões próprias das regiões do Sahel, sejam secas prolongadas e/ou pragas de gafanhotos, grilos e moscas.

Sem decorrer da condição saheliana de Cabo Verde, mas podendo-se incluir numa linha de calamidades naturais, devem acrescentar-se epidemias de paludismo, varíola, bexigas, cólera ou disenteria, gripe, doenças não identificadas e ainda as erupções e tremores de terra do Fogo.






1. Carreira, António, Cabo Verde – Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460 – 1878), IPC, Estudos e Ensaios, Praia, 2000, pp. 196-208.

2. História Geral de Cabo Verde, Vol. I, 2ª. Ed., Lx. e Praia, 2001, pp.13-14

3. O termo escravocracia vulgarizou-se bastante para designar sociedades que seriam inviáveis sem o trabalho escravo, mas não se encontra nos dicionários de português.

 

 

 

 

 

 

II – BASES DA CRIOULIDADE CABO – VERDIANA